MANIFESTO DA DIRECÇÃO: Este blogue “www.sortesdegaiola.blogspot.com”, tem como objectivo primordial só noticiar, criticar ou elogiar, as situações que mais se distingam em corridas, ou os factos verdadeiramente importantes que digam respeito ao mundo dos toiros e do toureio, dos cavalos e da equitação, com total e absoluta liberdade de imprensa dos nossos amigos cronistas colaboradores.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

P'ra que a terra não esqueça- Cesar Marinho...

Cesar Marinho - Um toureiro, um artista e um poeta...



P´ra que a terra não esqueça

Meu querido amigo César

Quis o destino dar-me o privilégio de me tornar teu amigo, há muitos, muitos anos atrás.

Conheci-te quando ainda eras novilheiro e como toda a gente naquela altura, vi (á época via pouco ou nada) ou por outra consegui ver, que em ti havia um artista em potência e todavia não conhecia o homem que estava por detrás do capote e da muleta.

Mais tarde já na Escola A. de Santarém comecei a conviver contigo, hora em Alpompé, ora no “Vargas”, ora no “Tintol”, ora no “central” ora onde calhava desde que fosse de preferência á noite.

Soube nessa altura que a tua carreira de novilheiro tinha sido interrompida, por motivo de grava doença e que tinhas regressado como bandarilheiro por influencia do Loiro (Gustavo).

A época na qual as esperanças que em ti depositavam os teus mestres - primeiro o distinto aficcionado Eng. Caldas de Oliveira e depois os irmãos Badajoz - tinha acabado de forma brutal e inglória.

Se é um facto que se perdeu um matador, não é menos verdade que se ganhou um subalterno diferente, na forma de tourear com arte e na forma de viver e pensar a vida.

Pensei já muitas vezes, sinceramente, que devias ter nascido em Sevilha, nessa terra onde a arte corre suavemente ou á bruta, como a água no leito do Guadalquivir.

O nosso comum amigo e enorme poeta ribatejano, Manuel Lima Monteiro Andrade, escreveu um dia um poema que começa assim

Minha mãe, eu canto a noite,
Porque o dia me castiga.
È no silencio da noite,
Que eu encontro a voz amiga.

Minha mãe, eu canto a noite
Como um barco que se afasta
E se perde no mar alto,
Ao pé da onda mais casta.

De certeza que ao escrever estes versos mais os outros igualmente soberbos que compõem o poema - talvez o que eu mais gosto de cantar no velhinho fado menor - fê-lo pensando em ti ou noutros artistas como tu, que na noite compõem poesia, caldeiam amizades e dão livremente asas ao pensamento na grandiosidade do barulho que os rodeia e na beleza do silencio duma qualquer pequenez.

Chegar de uma corrida á noite, parar em frente ao “Central” já fechado e ouvir que á tua voz acudia uma matilha de cães vadios, rodeando-te com mimos e desvelos (tratando-os cada qual pelo seu nome e com quem dialogavas), era um hino á natureza e ao verdadeiro amor aos animais.

Como toureiro não há muito a acrescentar ao que todos sabem.

Foste bandarilheiro de confiança do Gustavo, do Fernandinho Salgueiro, do Moura, do Bastinhas e saíste em Portugal com as máximas figuras Espanholas do toureio apeado, Juan Garcia Mondeño, Diego Puerta, Paquirri, Capea, Ruiz Miguel e tantos mais.

Toureaste em Sevilha com João Moura em 1984 corrida á qual eu assisti, e quando o cavaleiro foi trocar de cavalo, arreaste dois lances com a tua marca de artista e confidenciaste-me nesse dia que, quando te preparavas para rematar com uma meia Verónica, assaltou-te a ideia a tua condição de subalterno e soltaste a ponta do capote, mesmo assim esse público único no sentir, da “Real Maestranza”, reconheceu que estava ali um toureiro.

Para mim, a faceta toureira da tua vida como a de todas as dos outros a quem tenho escrito, não são da maior importância, por na maioria dos casos ser mais ou menos conhecida, importa-me muito mais o homem e a sua forma de estar no mundo, P’ra que a terra não esqueça.

Contigo e com mais alguns amigos, muitos deles infelizmente já desaparecidos, formámos “Os Marialvas” por concessão especial desse grande homem que serviu o regime com toda a lealdade, sem nunca dele se servir em proveito próprio, que deu outra dimensão a Santarém e ao Ribatejanismo.

Foi esse homem, Celestino Graça, de quem tu numa das muitas incursões pela poesia, escreveste:

Celestino de sua Graça,
Homem nobre e de bem,
Foste um Símbolo de raça
Da cidade de Santarém.

“Os Marialvas” tiveram na sua génese o Prof. Tavares, Zé Inês, Julio Pinhão, Jacinto Lico, Gustavo Zenkl, Fernando Cabral, Vitor Vargas, Zé Leiria, Carlos Lisboa, Fernando Chaperro, Picoto (Tokalon), Coelho, Mário negro, tu e eu próprio.

Nos anos seguintes já com construção definitiva, aderiram outros.

No primeiro ano montámos uma barraca na feira, coberta com oleados de camionetas e vedado com taipais, onde se cantava fado comia e bebia sem nada pagar, por compromisso assumido por nós tal como havia o compromisso igualmente assumido com o sr. Celestino Graça de lá dentro não haver zaragatas, e nunca houve ( cá fora era o que calhava).

Ninguém pagava, mas os visitantes ( muitos deles não os conhecíamos sequer) faziam ofertas de bebidas, enchidos, pão, lombos de porco, porcos inteiros, as velhas e tão portuguesas pataniscas etc. et. etc….

Funcionou aquela casa, sempre sem nada faltar, por mor ( palavra que significa, motivo, causa , razão – Diccionário de ling. Port. da texto editora) por mor dizia eu, da providência Divina. Só podia ser!!! E tu que não estivesses nesta…

Foste mais tarde com o sentimento profundo da gratidão o grande impulsionador de que ficasse este homem imortalizado na estátua que está na feira.

Do teu fino humor, não posso esquecer a propensão natural para pôr alcunhas. Ao Mandachuva começaste por chamar, “Plano de rega” passaste depois para “Mandachuva” e terminaste com o diminutivo “Manda”.

Ao teu companheiro de tantas tardes, Joaquim Gonçalves, alcunhaste-o de “Direitinho” ao Gustavo de “Loiro” e mais uns tantos que já se perderam na minha memória.

O teu relacionamento com o Gustavo era original. Duas personalidades tão dispares por vezes faziam faísca e foram várias as vezes que te despediste e ele te despediu.

Foste és e serás um homem de paixões, e por isso um dia despertou em ti esse sentimento em relação ao célebre cavalo “Kali- Kalan” que te conhecia mal entravas na cocheira e para quem tinhas sempre uma carícia guardada e uma palavra de ternura.

Levaste esta paixão ao exagero, ao ponto de não poderes ver um toiro a correr atrás dele na praça, que logo saltavas a cortá-lo. Uma vez na Nazaré tive com o Zé Zuquete a missão imcumbida pelo “Loiro” de não te deixarmos saltar quando isso acontecesse.

Vou terminar recordando aqui e agora com excertos da tua veia poética e da sensibilidade artística que sempre emanou de ti para orgulho dos teus amigos mesmo aqueles que convivendo contigo te conhecem mal por não te compreenderem.

Ao J. Moura escreveste:

A sonhar com toiradas,
Saltou do berço e montou,
Como num conto de fadas
João Moura Toureou

E ao toiro, esse nobre animal, razão primeira da tua arte e enfoque total da tua vida, escreveste:

Toiro preto e bragado
Bendito por sois e luas
Toiro da lua enamorado,
Que lhe beija as hastes nuas.

E numa premonição poética da morte, dedicaste á tua terra que outrora se chamou “Scalaabis” esta pérola.

O meu pedido de adeus,
Será um doce palpitar.
Teus amores serão os meus,
Num imortal acenar.

César és um artista, por vezes arredado da realidade, como é natural em quem foi bafejado com esse dom.

Èmile Zola disse um dia : “A arte é um canto da realidade visto através de determinados temperamentos”

Aprecio a tua forma de passar pelo mundo e pensando nela veio-me á ideia outra frase celebre, desta vez de Óscar Wilde: “É o apreciador não a vida, que a arte no fundo espelha”.

Para ti César Marinho, cidadão do mundo, nascido em 2 de Janeiro de 1934, amante da noite, testemunho da verdadeira amizade, poeta, toureiro, fadista e apaixonado incorrigível da beleza das coisas, aqui fica um pouco da tua vida P’ra que a terra não esqueça.