Mais um notável artigo do Professor Miguel Esteves Cardoso que publicados com a devida vénia..
OS LAMBECUS
“Noto com desagrado que se tem desenvolvido muito em Portugal uma
modalidade desportiva que julgara ter caído em desuso depois da
revolução de Abril. Situa-se na área da ginástica corporal e envolve
complexos exercícios contorcionistas em que cada jogador procura, por
todos os meios ao seu alcance, correr e prostrar-se de forma a lamber o
cu de um jogador mais poderoso do que ele.
Este cu pode ser o cu de um superior hierárquico, de um ministro, de
um agente da polícia ou de um artista. O objectivo do jogo é
identificá-los, lambê-los e recolher os respectivos prémios. Os prémios
podem ser em dinheiro, em promoção profissional ou em permuta. À medida
que vai lambendo os cus, vai ascendendo ou descendendo na hierarquia.
Antes do 25 de Abril esta modalidade era mais rudimentar. Era
praticada por amadores, muitos em idade escolar, e conhecida
prosaicamente como «engraxanço».
Os chefes de repartição engraxavam os chefes de serviço, os alunos
engraxavam os professores, os jornalistas engraxavam os ministros, as
donas de casa engraxavam os médicos da caixa, etc. ..
Mesmo assim, eram raros os portugueses com feitio para passar graxa.
Havia poucos engraxadores. Diga-se porém, em abono da verdade, que os
poucos que havia engraxavam imenso. Nesse tempo, «engraxar» era uma
actividade socialmente menosprezada.
O menino que engraxasse a professora tinha de enfrentar depois o
escárnio da turma. O colunista que tecesse um grande elogio ao
Presidente do Conselho era ostracizado pelos colegas. Ninguém gostava de
um engraxador.
Hoje tudo isso mudou. O engraxanço evoluiu ao ponto de tornar-se
irreconhecível. Foi-se subindo na escala de subserviência, dos sapatos
até ao cu.
O engraxador foi promovido a lambe-botas e o lambe-botas a lambe-cu.
Não é preciso realçar a diferença, em termos de subordinação hierárquica
e flexibilidade de movimentos, entre engraxar uns sapatos e lamber um
cu.
Para fazer face à crescente popularidade do desporto, importaram-se
dos Estados Unidos, campeão do mundo na modalidade, as regras e os
estatutos da American Federation of Ass-licking and Brown-nosing. Os
praticantes portugueses puderam assim esquecer os tempos amadores do
engraxanço e aperfeiçoarem-se no desenvolvimento profissional do
Culambismo.
(…) Tudo isto teria graça se os culambistas portugueses fossem tão
mal tratados e sucedidos como os engraxadores de outrora. O pior é que a
nossa sociedade não só aceita o culambismo como forma prática de subir
na vida, como começa a exigi-lo como habilitação profissional.
O culambismo compensa. Sobreviver sem um mínimo de conhecimentos de
culambismo é hoje tão difícil como vencer na vida sem saber falar
inglês.”