Na apresentação em Lisboa... |
Gines meu querido amigo:
Quis o destino tornar-te a vida curta.
O destino é por vezes estupidamente cruel e por ser assim cortou a tua carreira, levando-te para o além, no preciso momento em que estavas num ponto altíssimo da tua curta mas plena vida artística.
Todavia estavas no inicio da curva ascendente da tua enorme margem de progressão.
Conheci-te num pueblo de Múrcia montado numa pencaria incrível, mas por já me teres sido referenciado pus toda a atenção no teu sentido de lide, na tua equitação e sobretudo no conceito de espectáculo.
Tudo era diferente!!!
Quanto ao sentido de lide, este resumia-se numa ligação total e permanente cavalo-toiro, em que as distancias existiam por si, sem que fossem forçadas em busca do cómodo, como tantas vezes se vê.
Quanto á equitação, que era tudo menos académica, sobressaia uma eficácia resultante de uma habilidade nata, baseada tão só no contacto intermitente das pernas com a barriga dos cavalos, que os punha em permanente acção tirando deles um brilhantismo que não tinham naturalmente.
Um dia disse-te : “Gines, um cavalo de classe não te aguenta”.
Para me provares o contrário compraste na Golegâ um cavalo cruzado bem arranjado (ferro Herdade do Pinheiro) ao Juliano Louceiro (teu fã incondicional) e disseste-me: “com este vou demonstrar-te que sou capaz de tourear num cavalo de classe”.
Dois ou três meses depois fui a Madrid encontrar-me contigo, estando em causa outras razões de ordem artística.
Como era natural fomos ás aforas da cidade onde tinhas a “quadra” para me mostrares e montares os cavalos novos.
Ao constatar que não estava lá o tal “Herdade do Pinheiro” perguntei por ele.
Respondeste-me com a maior honestidade do mundo: “ Puta que o pariu, ía-me matando! Efectivamente não me entendo com cavalos de classe…”
A isto chama-se humildade, consciência e hombridade! Só tu!!!
Conhecia-te ainda com pouca intimidade, quando certo dia coincidimos em casa de António Ignácio Vargas estavas tu no começo, isto passou-se pouco tempo depois de te ver no tal pueblo de Múrcia, e negociavas ali naquele momento um cavalo de saída (ferro conde de Aguilar, coudelaria que depois esteve na moda com os raidistas) com muitos anos de toureio e que estava arrasado de membros.
Depois de consumado o negócio perguntei-te para que o querias.
Respondeste-me: “Para tourear, é que eu não tenho dinheiro para um melhor…”
Pensei cá para comigo, este tipo é doido!!!
Qual não é o meu espanto quando três ou quatro meses depois te vejo sair nele em Madrid (na corrida que toureaste com Bedoya e os irmãos João e António Ribeiro Telles, os toiros do sr. José Infante), corrida em que triunfaste a grande altura ainda que tenha sido furado um dos teus cavalos.
Eras assim diferente e desconcertante, com a loucura que é apanágio dos génios.
Para mim, o rejoneio em Espanha divide-se em quatro épocas.
Antes de Canero, depois de Angel Peralta, depois de José Samuel Lupi e depois de Cartagena.
Vocês, os quatro maestros ficam na história porque trouxeram coisas novas ao toureio.
Cañero trouxe o espectáculo o ritmo e consagrou a “doma vaquera”.
Peralta dignificou o espectáculo até aí conhecido pelo numero do “Caballito”, transformando-o em “Corrida D’el Arte de Rejoneio, com o reportório variado, desde bandarilhar a duas mãos pela esquerda e pela direita, o galopar ao revés ( hoje demasiado vulgarizado), as piruetas na cara do toiro e as românticas rosas (sorte resultante de um conto escrito por ele, pleno de sensibilidade), pondo desta forma como ainda hoje se diz, “O rejoneio em arte”!!!
Lupi introduziu o parar, o templar, e o mandar (que até ali não se tinham visto no país vizinho), tão só as regras bases do toureio a cavalo moderno, e o qiuebro, a sorte que veio mais tarde a fazer escola, além duma forma particularmente humanista e social de se mover no mundo.
Tu meu querido e especial amigo, trouxeste o quiebro pela esquerda, o entendimento dos pormenores do espectáculo que agradavam a cada público e sobretudo o diálogo surdo, da troca de olhares com o “respeitável” que já te aplaudiam antes dos violinos, porque já lhe tinhas transmitido com o gesto discreto e com a mirada o que ias fazer.
Socialmente foste um fenómeno, em França idolatravam-te, em Portugal eu vi vários conservadores como o Sr. e mestre Manuel Conde, aplaudirem-te depois de começarem por te assobiar. A mim disse-me o mestre atrás citado: “o tipo dentro daquelas loucuras tem coisas formidáveis” (formidável, palavra tão ao gosto do mestre de Algueirão”.
Em Espanha tua terra natal e não sendo Andaluz, fizeste escola e todos á época te imitaram, alguns borlescamente no fácil e primitivo, e ainda hoje muitos o fazem.
Há e ouve outros grandes toureiros em Espanha mas que não trouxeram nada de novo, limitando-se por vezes com raro brilhantismo a aperfeiçoar o património existente.
Os teus cavalos tinham todos, mas todos, “Passage” e “Piaffer” e a muitos tiravas a “Pirueta inversa”, a “Reverance” a “Levada” e a “Cabriola”.
È verdade que estes ares de escola que as tuas montadas exibiam, não eram correctos, mas quantos toureiros há que apresentem esses ares de escola de forma académica???
Nenhum, digo eu…!!!
Apresentaste-te em França, a quando da peste equina, com os cavalos do cavaleiro francês e meu amigo, Michel Cayuela. Montaste-os três dias antes e ganhaste o “centauro de ouro” ao lado de Vidrié (que grande toureiro), Buendia moralizado (que tinha acabado de sair em ombros em Sevilha pela porta dos Principes), tendo estes levado a sua quadra o que tu não conseguiste, por razões burocráticas. Além destes dois, toureou Luc Jalabert ( montado no Quieto ferro Ortigão e no Ribatejo ferro Vinhas que fazia o balanceio - raid-up de origem argentina) na cara dos toiros, cavalos esses que o puseram no top da sua carreira, além de Pellen e Marie Sara.
Poucas vezes vi uma praça tão em delírio como nesse dia contigo.
Na véspera da corrida assistíamos junto com Luc, Bernard Parra, Cayuela, Michel Laport e mais uns tantos ao desfilar de Abrivades.
Para quem não sabe, Abrivade é a largada de um toiro camarguês que metido no meio de seis cavaleiros a galope, dois de cada lado do toiro, um á frente tapando a saída e outro atrás coleando (agarrando o rabo), percorrem a rua da cidade á carga, montados nos cèlebres “Crin Blanc”, esses mesmos que se protegem do “Mistral” encostando-se toiros e cavalos nessa Camarga profunda onde o maestro António Ordoñes quis que depositassem parte das suas cinzas.
Pois bem quiseste tomar parte numa Abrivade e ainda que todos os presentes tentássemos refrear a ideia, como era natural, teimaste e montaste-te a cavalo indo na frente com o cavalo ligeiramente atravessado, lugar mais perigoso.
A partir desse momento passaste a ser tão camarguês como os demais, e fiquei com a ideia que a própria “Virgen De Los Gitanos, patrona destes e da cidade” passou a olhar por ti, mas distraiu-se a pobre, naquela maldita noite em que um camion te tirou a vida, ficando nessa aficcionadíssima região Francesa uma Peña taurina com o teu nome que te perpetuará.
Foi também em Sainte Maries de la Mer, que toureaste uma corrida mano a mano com Moura, que nessa altura tinha em França quatro cavalos de segundo plano (o Forcado, um S.Estevão (bom mas pequenino), um castanho de ferro Espanhol de que não me lembro o nome, mais um de terceiro tércio vulgar e mais dois ou três que não estavam á altura do de Monforte.
Não estiveste nos teus dias, tudo te saiu mal e até a sorte de matar, em que eras exímio não resultou.
Jõão Moura, ao contrário do que era esperado, com a sua raça, o seu génio e a pitadinha de sorte que faz falta em tudo na vida, suplantou-se vindo a triunfar e a ganhar o troféu.
Tinhas uma ceia combinada na peña, e tinhas mandado fazer umas t-shirts onde se lia : “Gines Cartagena, Triunfador do Cetauro de ouro de 199 e tal( não me lembro ao certo da data).
No hotel “Mas de Riége” onde ficavam os toureiros, começaste a vestir as t-shirts a toda a gente, começando pelo Benito Moura (outro homem fantástico, para quem a vida foi igualmente madrasta), convidando todos para a tal ceia preparada em tua honra, com o argumento demolidor, de que a mesma estava paga e as t-shirts também e que por isso não ias deitar nada borda fora.
Como todos nos divertimos!!!
Eras por inteiro um tipo diferente…
Ligaste-me em determinada altura, isto a quatro dias da mais importante corrida de Rejoneo de Sevilha, que se realizava e realiza no último domingo da “Feira” pela manhã.
Disseste-me então : “João, os cavalos estão fatais, não consigo pôr um ferro com nenhum, vem para cá !!!
Peguei no carro e arranquei, chegando a Madrid já tarde instalei-me como sempre no velhinho Hotel Paris. Estavas á minha espera e ainda fomos tomar um copo juntos… um não, vários…
No dia seguinte de manhã bem cedo ( a hora de levantar, não tem nada que ver com a hora de deitar), aí estavas para seguirmos para o “cortijo”.
Montaste os cavalos que efectivamente não estavam bem e perguntaste-me : “Que tal”?
Respondi-te : descansa-os hoje e amanhã de manhã e monta-os calmamente á tarde e na quinta também á tarde, e na sexta toureias uma vaca.
Assim fizeste, e sábado fomos para Sevilha.
Domingo toureaste em último, ninguém tinha cortado pêlo, e tu pregaste duas bandarilhas no chão sendo que a última pertencia a um par a duas mãos que ficou meio. Olhaste para o público como que dizendo, perdoem-me porque agora é que vai ser.
Pegaste num par de bandarilhas de palmo e cravaste-o a duas mãos, e depois outro, e depois três rosas em caracoleo para calibrar a investida do toiro para a sorte suprema.
Recolheste o rojão de morte e partiste para o toiro a passo e depois com meia dúzia de trancos suaves, o que não era hábito em ti, recortaste-te e puseste-te em sorte, levantaste o braço e partiste cravando a arma em todo o alto.
O toiro rodou sem puntilla, e o público pediu uma orelha e depois com toda a intensidade pediu a outra que igualmente te foi concedida.
Já no hotel, disse-te: “Não tens vergonha?? Com meio petardo cortas duas orelhas???
Respondeste-me então - a brincar, claro.. - :”O que é importante é ver o público que junta dinheiro á semana para comprar o bilhete ao domingo feliz, não tu que vês a corrida de borla…”
Nada melhor para definir a grandeza da tua pessoa do que mais esta história que vou contar. Tinhas feito um contrato para tourear várias corridas na Colômbia e pediste-me que te arranjasse nove cavalos velhos, coxos ou as duas coisas, porque os mesmos ficavam lá, por serem grandes as dificuldades postas pelas autoridades sanitárias, no seu regresso.
Juntei os cavalos em minha casa em Benavente, compraste-os sem os montar como várias pessoas verificaram ( por exemplo os irmãos Travessas), não sem que antes te tivesses entregado ao jogo do negócio, oferecendo-me X mais uma cabeçada á espanhola, Y mais uma montura ou Z mais vinte caixas de Fenibultazona que á época se usava como potente anti-inflamatório.
Farto do jogo disse-te: “Dás-me tanto… e se os venderes bem vendidos, dás-me mais o que tu entenderes.
Quando regressaste da tournée, fui ter contigo a Madrid. Jantámos juntos e no fim do repasto disseste-me: “João, coreu mal a coisa os cavalos vendi-os por uma “tuta e meia”
E se não perdi também não ganhei.
Respondi-te: “Também não estava a contar com nada…”
Foi então que o teu irmão se começou a rir e tu puxaste de um envelope, com uma quantia que mesmo nos dias de hoje é significativa, e deste-mo com esta frase: “ toma cabrão… ainda pensei em enganar-te, mas não fui capaz.
A arte e a tua personalidade, explanavam-se como as ondas do mar, soltas livremente, ora suaves ora tremendas mas magestosas.
Para ti, nem os dias nem as noites tinham fim.
Eras uma força da natureza e quem duvidasse bastava ver-te aquecer os cavalos e a forma como saltavas de um para o outro, e a forma com que dispunhas do teu corpo quando montado.
A centelha artística e a sensibilidade via-se em tudo, como por exemplo quando na corrida de homenagem a Peralta em Lunel, te apeaste do cavalo no meio da praça, entregando-o a um cocheiro e te dirigiste ao velho mestre dizendo : Brindo-te esta lide e faço-o a pé, porque senti que a cavalo pouco sou ao pé da tua história (estava presente neste dia José Maldonado Cortes).
Meu querido amigo espera por mim para um dia tomar-mos um Wisky, o meu com água lisa, o teu com Coca-Cola, como d’habitude.
Henri Amiel disse: “Fazer com facilidade o que os outros acham difícil é talento; fazer o que o talento não consegue é próprio de um génio”:
Tinhas talento e foste um génio e é por isso que te escrevo e deixo ao mundo esta carta, P’ra que a terra não esqueça.