As coisas boas da vida
De um texto do Dr. Miguel Sousa Tavares extraimos este excerto, pelo que encerra do valor das coisas simples..
Em termos de caça, o dia podia ter corrido melhor: poucos coelhos, poucas perdizes e só duas lebres. Mas isso, acredite-se ou não, está longe de ser o principal. Felizmente, longe vão os tempos em que, na estrada de regresso, tínhamos de nos cruzar com as carrinhas e jipes dos caçadores ostentando, orgulhosa e imbecilmente, as peças de caça (algumas compradas localmente) penduradas nas traseiras. A lei proibiu isso, e os caçadores foram mudando de mentalidade para melhor sobreviver: apesar de ser verdade que em cada caçador há um mentiroso, no fim da caçada não há ninguém a gabar-se de quantas peças matou, mas, quanto muito, a falar de um tiro bem dado ou de uma bela cobrança do cão. O almoço espera na mesa, e esse é um dos momentos mais aguardados de uma caçada. Uma fraternidade de homens cansados, mal dormidos e sujos vai sentar-se à mesa com a alegria dos tempos das cantinas da escola ou da tropa. Mãozinhas de vaca com grão e febras de porco preto. Alface da horta e laranjas do pomar. Depois, partilha-se entre todos e por igual o monte da caça, trocam-se coelhos por perdizes e perdizes por garrafas de azeite ou de medronho artesanal. Tudo longe do olhar purificador da ASAE, da lei e dos bons costumes. E, como um bando de conspiradores após uma reunião secreta, dispersamo-nos, cada um a caminho da sua cidade, onde ninguém sabe nem sonha que também existem manhãs de sábado mais felizes do que as manhãs dos centros comerciais.
De um texto do Dr. Miguel Sousa Tavares extraimos este excerto, pelo que encerra do valor das coisas simples..
Em termos de caça, o dia podia ter corrido melhor: poucos coelhos, poucas perdizes e só duas lebres. Mas isso, acredite-se ou não, está longe de ser o principal. Felizmente, longe vão os tempos em que, na estrada de regresso, tínhamos de nos cruzar com as carrinhas e jipes dos caçadores ostentando, orgulhosa e imbecilmente, as peças de caça (algumas compradas localmente) penduradas nas traseiras. A lei proibiu isso, e os caçadores foram mudando de mentalidade para melhor sobreviver: apesar de ser verdade que em cada caçador há um mentiroso, no fim da caçada não há ninguém a gabar-se de quantas peças matou, mas, quanto muito, a falar de um tiro bem dado ou de uma bela cobrança do cão. O almoço espera na mesa, e esse é um dos momentos mais aguardados de uma caçada. Uma fraternidade de homens cansados, mal dormidos e sujos vai sentar-se à mesa com a alegria dos tempos das cantinas da escola ou da tropa. Mãozinhas de vaca com grão e febras de porco preto. Alface da horta e laranjas do pomar. Depois, partilha-se entre todos e por igual o monte da caça, trocam-se coelhos por perdizes e perdizes por garrafas de azeite ou de medronho artesanal. Tudo longe do olhar purificador da ASAE, da lei e dos bons costumes. E, como um bando de conspiradores após uma reunião secreta, dispersamo-nos, cada um a caminho da sua cidade, onde ninguém sabe nem sonha que também existem manhãs de sábado mais felizes do que as manhãs dos centros comerciais.
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
Texto publicado na edição do Expresso