P´ra que a terra não esqueça
Meu querido amigo César
Quis o destino dar-me o privilégio de me tornar teu amigo, há muitos, muitos anos atrás.
Conheci-te quando ainda eras novilheiro e como toda a gente naquela altura, vi (á época via pouco ou nada) ou por outra consegui ver, que em ti havia um artista em potência e todavia não conhecia o homem que estava por detrás do capote e da muleta.
Mais tarde já na Escola A. de Santarém comecei a conviver contigo, hora em Alpompé, ora no “Vargas”, ora no “Tintol”, ora no “central” ora onde calhava desde que fosse de preferência á noite.
Soube nessa altura que a tua carreira de novilheiro tinha sido interrompida, por motivo de grava doença e que tinhas regressado como bandarilheiro por influencia do Loiro (Gustavo).
A época na qual as esperanças que em ti depositavam os teus mestres - primeiro o distinto aficcionado Eng. Caldas de Oliveira e depois os irmãos Badajoz - tinha acabado de forma brutal e inglória.
Se é um facto que se perdeu um matador, não é menos verdade que se ganhou um subalterno diferente, na forma de tourear com arte e na forma de viver e pensar a vida.
Pensei já muitas vezes, sinceramente, que devias ter nascido em Sevilha, nessa terra onde a arte corre suavemente ou á bruta, como a água no leito do Guadalquivir.
O nosso comum amigo e enorme poeta ribatejano, Manuel Lima Monteiro Andrade, escreveu um dia um poema que começa assim
Minha mãe, eu canto a noite,
Porque o dia me castiga.
È no silencio da noite,
Que eu encontro a voz amiga.
Minha mãe, eu canto a noite
Como um barco que se afasta
E se perde no mar alto,
Ao pé da onda mais casta.
De certeza que ao escrever estes versos mais os outros igualmente soberbos que compõem o poema - talvez o que eu mais gosto de cantar no velhinho fado menor - fê-lo pensando em ti ou noutros artistas como tu, que na noite compõem poesia, caldeiam amizades e dão livremente asas ao pensamento na grandiosidade do barulho que os rodeia e na beleza do silencio duma qualquer pequenez.
Chegar de uma corrida á noite, parar em frente ao “Central” já fechado e ouvir que á tua voz acudia uma matilha de cães vadios, rodeando-te com mimos e desvelos (tratando-os cada qual pelo seu nome e com quem dialogavas), era um hino á natureza e ao verdadeiro amor aos animais.
Como toureiro não há muito a acrescentar ao que todos sabem.
Foste bandarilheiro de confiança do Gustavo, do Fernandinho Salgueiro, do Moura, do Bastinhas e saíste em Portugal com as máximas figuras Espanholas do toureio apeado, Juan Garcia Mondeño, Diego Puerta, Paquirri, Capea, Ruiz Miguel e tantos mais.
Toureaste em Sevilha com João Moura em 1984 corrida á qual eu assisti, e quando o cavaleiro foi trocar de cavalo, arreaste dois lances com a tua marca de artista e confidenciaste-me nesse dia que, quando te preparavas para rematar com uma meia Verónica, assaltou-te a ideia a tua condição de subalterno e soltaste a ponta do capote, mesmo assim esse público único no sentir, da “Real Maestranza”, reconheceu que estava ali um toureiro.
Para mim, a faceta toureira da tua vida como a de todas as dos outros a quem tenho escrito, não são da maior importância, por na maioria dos casos ser mais ou menos conhecida, importa-me muito mais o homem e a sua forma de estar no mundo, P’ra que a terra não esqueça.
Contigo e com mais alguns amigos, muitos deles infelizmente já desaparecidos, formámos “Os Marialvas” por concessão especial desse grande homem que serviu o regime com toda a lealdade, sem nunca dele se servir em proveito próprio, que deu outra dimensão a Santarém e ao Ribatejanismo.
Foi esse homem, Celestino Graça, de quem tu numa das muitas incursões pela poesia, escreveste:
Celestino de sua Graça,
Homem nobre e de bem,
Foste um Símbolo de raça
Da cidade de Santarém.
“Os Marialvas” tiveram na sua génese o Prof. Tavares, Zé Inês, Julio Pinhão, Jacinto Lico, Gustavo Zenkl, Fernando Cabral, Vitor Vargas, Zé Leiria, Carlos Lisboa, Fernando Chaperro, Picoto (Tokalon), Coelho, Mário negro, tu e eu próprio.
Nos anos seguintes já com construção definitiva, aderiram outros.
No primeiro ano montámos uma barraca na feira, coberta com oleados de camionetas e vedado com taipais, onde se cantava fado comia e bebia sem nada pagar, por compromisso assumido por nós tal como havia o compromisso igualmente assumido com o sr. Celestino Graça de lá dentro não haver zaragatas, e nunca houve ( cá fora era o que calhava).
Ninguém pagava, mas os visitantes ( muitos deles não os conhecíamos sequer) faziam ofertas de bebidas, enchidos, pão, lombos de porco, porcos inteiros, as velhas e tão portuguesas pataniscas etc. et. etc….
Funcionou aquela casa, sempre sem nada faltar, por mor ( palavra que significa, motivo, causa , razão – Diccionário de ling. Port. da texto editora) por mor dizia eu, da providência Divina. Só podia ser!!! E tu que não estivesses nesta…
Foste mais tarde com o sentimento profundo da gratidão o grande impulsionador de que ficasse este homem imortalizado na estátua que está na feira.
Do teu fino humor, não posso esquecer a propensão natural para pôr alcunhas. Ao Mandachuva começaste por chamar, “Plano de rega” passaste depois para “Mandachuva” e terminaste com o diminutivo “Manda”.
Ao teu companheiro de tantas tardes, Joaquim Gonçalves, alcunhaste-o de “Direitinho” ao Gustavo de “Loiro” e mais uns tantos que já se perderam na minha memória.
O teu relacionamento com o Gustavo era original. Duas personalidades tão dispares por vezes faziam faísca e foram várias as vezes que te despediste e ele te despediu.
Foste és e serás um homem de paixões, e por isso um dia despertou em ti esse sentimento em relação ao célebre cavalo “Kali- Kalan” que te conhecia mal entravas na cocheira e para quem tinhas sempre uma carícia guardada e uma palavra de ternura.
Levaste esta paixão ao exagero, ao ponto de não poderes ver um toiro a correr atrás dele na praça, que logo saltavas a cortá-lo. Uma vez na Nazaré tive com o Zé Zuquete a missão imcumbida pelo “Loiro” de não te deixarmos saltar quando isso acontecesse.
Vou terminar recordando aqui e agora com excertos da tua veia poética e da sensibilidade artística que sempre emanou de ti para orgulho dos teus amigos mesmo aqueles que convivendo contigo te conhecem mal por não te compreenderem.
Ao J. Moura escreveste:
A sonhar com toiradas,
Saltou do berço e montou,
Como num conto de fadas
João Moura Toureou
E ao toiro, esse nobre animal, razão primeira da tua arte e enfoque total da tua vida, escreveste:
Toiro preto e bragado
Bendito por sois e luas
Toiro da lua enamorado,
Que lhe beija as hastes nuas.
E numa premonição poética da morte, dedicaste á tua terra que outrora se chamou “Scalaabis” esta pérola.
O meu pedido de adeus,
Será um doce palpitar.
Teus amores serão os meus,
Num imortal acenar.
César és um artista, por vezes arredado da realidade, como é natural em quem foi bafejado com esse dom.
Èmile Zola disse um dia : “A arte é um canto da realidade visto através de determinados temperamentos”
Aprecio a tua forma de passar pelo mundo e pensando nela veio-me á ideia outra frase celebre, desta vez de Óscar Wilde: “É o apreciador não a vida, que a arte no fundo espelha”.
Para ti César Marinho, cidadão do mundo, nascido em 2 de Janeiro de 1934, amante da noite, testemunho da verdadeira amizade, poeta, toureiro, fadista e apaixonado incorrigível da beleza das coisas, aqui fica um pouco da tua vida P’ra que a terra não esqueça.