MANIFESTO DA DIRECÇÃO: Este blogue “www.sortesdegaiola.blogspot.com”, tem como objectivo primordial só noticiar, criticar ou elogiar, as situações que mais se distingam em corridas, ou os factos verdadeiramente importantes que digam respeito ao mundo dos toiros e do toureio, dos cavalos e da equitação, com total e absoluta liberdade de imprensa dos nossos amigos cronistas colaboradores.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Vital Moreira e os sete anões

Vimos por este meio proceder ao respectivo pedido de desculpas formal, ao nosso colaborador El Erudito, porque erroneamente publicámos de forma "atabalhoada" um texto seu sem que ele estivesse completo. Seguidamente, publicamos já concluído, corrigido e formatado, o texto do mesmo nosso colaborador.

Vital Moreira e os sete anões          
                   
Num tranquilo fim de tarde deste Verão, em que o mundo parece tudo menos tranquilo, fizeram-me chegar às mãos o texto, ou excerto de um texto, que transcrevo a seguir.
<<  Já não basta a barbárie da tortura dos animais para gáudio do sadismo público, que as touradas em geral constituem. Agora há quem queira juntar-lhe o picante do odioso atentado à dignidade humana dos anões.
Decididamente quando é que, perante a cobarde omissão do legislador, um tribunal tem a coragem de proibir estes espectáculos de degradação humana em nome da proteção constitucional da dignidade humana?>>



 E garantiram-me ser da autoria de Vital Moreira, alegadamente, publicado numa passada sexta-feira, dia 21 de Agosto de 2015, na sequência do cancelamento de uma tourada com anões em Viana do Castelo.
São diversas as problemáticas sérias e inquestionáveis que podem ter estado na origem desta indignação a que o jurista tem pleno direito, e que o seu percurso e convicções pessoais justificam cabalmente.
Questões e conceitos como barbárie, sadismo público, odioso atentado á dignidade humana (dos anões), coragem e degradação, sobretudo quando invocados numa conjuntura em que os valores, bem como as conceções éticas que traduzem, andam pelas ruas da amargura, primam pela ausência, ou pela omnipresença do lugar-comum “politicamente correto”, não deveriam ser entendidos com ligeireza. Como seria de esperar da parte de Vital Moreira.
Mas parece forçoso abordá-los casuisticamente.
Abusando embora da semântica, e desculpando-me desde já pela liberdade polissémica que tomo, interpreto em sentido lato o conceito de anão como uma questão de género. Logo como algo de incontornável e muitíssimo atual. Algo que se prende com a questão das minorias, ou géneros, oprimidos e descriminados. Recordemos que em Espanha, em 1997, teve lugar uma sublevação conhecida no mundillo tauromáquico como guerra dos Anões, que se ficou a dever ao facto de os artistas deste “género” se recusarem pagar por inteiro as cotas ao sindicato dos toureiros. Ignoro se essa recusa se baseava apenas num justo princípio de proporcionalidade anatómica, ou se, subjacentemente, existiriam outros vexames e prepotências com que, por via de regra, os maiores oprimem os mais pequenos. O certo é que a reivindicação foi atendida dando assim origem a um novo tipo de carné de Toureiro ''Cómico-Taurino”. Categoria que aparentemente os satisfez, a despeito da (involuntária?) redundância implícita, e ainda hoje prevalece. Nas não constitui regra geral. Na América Latina de Bolívar, Pancho Villa e Evo Morales, onde as revoltas contra as opressões e as discriminações têm justa causa para permanecerem em brasa, ou eclodirem em chamas, o assunto foi resolvido com dignidade natural; resultando daí que na Federación de Toreros de México e Sud América, os artistas Anões tenham direito a um cartel de Toureiro normal, e sem qualquer discriminação explícita.

 Ignoro se Vital Moreira se inscreve na linha de pensamento de acordo com a qual um sistema de quotas pode (deve?) contribuir para uma mais do que justa caminhada em direção á igualdade de género. Mas convirá seguramente que, tendo presente a existência de um segmento não negligenciável de profissionais do toureio que se poderá inscrever no conceito genérico de anão, o institucionalizar de uma quota obrigatória de membros deste segmento de profissionais em todos os cartéis seria, a vários títulos, benéfico. Como se demonstraria desde logo pela eliminação, ou simples diluição, da carga pejorativa que ressuma do título: cancelamento de uma tourada com anões em Viana do Castelo, que compreensivelmente encolerizou o Catedrático e Homem Público a ponto de utilizar uma veemência de linguagem que habitualmente reserva para as grandes causas da humanidade.
 O Professor de Coimbra tem-nos ensinado que as mentalidades não se mudam apenas com umas quantas medidas avulsas que, tantas vezes, não passam de letra morta ou, entendida e aplicada de acordo com os interesses e as conjunturas. A formatação das massas só ganha em ser iniciada bem cedo através de uma adequada pedagogia, susceptível de mergulhar o futuro cidadão eleitor, e sujeito passivo do sistema fiscal, num caldo de cultura que lhe concentre o espírito nas orientações superiormente definidas como politicamente corretas. Tendendo a generalizar-se ultimamente a consciência de que, além de politicamente corretas, são as únicas realisticamente possíveis, se quisermos evitar as consequências dramáticas que a utopia grega desencadeou com a sua dissidente abertura da caixa de Pandora.
 Exemplo claro desta prática são os Planos Nacionais de Leitura através dos quais são superiormente definidas as editoras, os autores, e as obras inequivocamente ortodoxas na perspetival da Situação, que os jovens devem ler obrigatoriamente durante a escolaridade. Esclareço o Constitucionalista Vital Moreira de que tenho pleno conhecimento de que esta prudente e desvelada medida cautelar, a que recorrerem e virão a recorrer todos os Regimes preocupados com a difusão da boa doutrina e a erradicação das heresias nocivas, foi concebida e posta em prática pelos pensadores do Ministério da Educação em data anterior á da conferência intitulada De la manipulation des foules. Analyses dialectique, que Philippe Ploncard d’Assac só viria a proferir em 27 de Junho de 2015
 Mas em consonância com esta linha de pensamento, a inclusão de obras como a Branca de Neve e os sete anões no Plano Nacional de Leitura não deixaria de contribuir para a edificação de gerações homogéneas e formalmente igualitárias, conscientes de que todas as descriminações, sobretudo as de natureza antropológica, devem ser abolidas numa sociedade em que todos os seres humanos (e não só) nascem livres e iguais, partilhando a igualdade de oportunidades e os direitos constitucionalmente garantidos, como a realidade evidencia a cada instante.
Podem todavia surgir algumas dissensões aparentes no conceito unívoco de dignidade humana que é necessário e urgente ter a coragem de denunciar como fez exemplarmente Vital Moreira. Afinal todos nós, atravessámos décadas de laxismo durante as quais o princípio basilar do direito á diferença se foi disseminando como se todas as diferenças tivessem o mesmo peso, a mesma dignidade e a mesma legitimidade.
Parece incrível, mas sucedeu e prologou-se, com todas as consequências que estão á vista de todos.
A doutrina do Eixo do Mal veio, em boa hora, pôr termo a essa promiscuidade insidiosa que os governos que governam os governos da Europa têm abordado e esterilizado com pinças e luvas de cirurgião. É imperativo que, afinal, a realidade seja a preto e branco (polissemia e não só). O Bem e o Mal coexistem e é indispensável fazer as escolhas corretas e tirar delas as consequências óbvias e as ações decorrentes. E como todas as ações provocam reações, geralmente de sinal contrário, globalizou-se a evidência de que o direito á diferença não é um valor absoluto mas sim relativo e, justifica o afrontamento generalizado, a rejeição e a intolerância em nome de um Bem Superior situado num futuro condicional.
Nisso todos parecem estar de acordo, excetuando talvez Varoufakis, Mortágua e outos dissidentes menores.
 Mas como determinadas situações de afrontamento originam impasses que se eternizam, as coisas tornam-se negociáveis, relativizáveis e permutáveis por imperativos do mais elementar realismo.
Sem me sentir obrigado a regressar ao Sísifo de Adolfo, Benito, Pol Pot, Estaline e outros próceres diacronicamente distantes, mas ritualmente invocados nas análises de custos/benefícios que padecem de uma conveniente amnésia do presente e passado próximo, contemplo a visão de ideólogos eminentes como, por exemplo, Abu Bakr al-Baghdadi, Donald Rumsfeld, George W. Bush, ou o mais elusivo Tony Blair, que me correm agora.
 Os primatas ditos superiores têm ao seu dispor ferramentas divergentes para organizar as respectivas sociedades. Os chipanzés criam estruturas fortemente hierarquizadas em que o poder é imposto através da imposição violenta de dominâncias temporárias. São grupos dinâmicos, eficazes, expansionistas e muito, mas muito, ruidosos e intolerantes. Já os bonobos, a fazer fé nos primatólogos, geram as suas interações mediante o recurso a um sistema que apazigua os conflitos e dilui a intolerância. Constituem grupos estagnados, pouco dinâmicos, nada expansionistas, com hierarquias débeis e esgotam-se num hedonismo sem amanhãs apelativos. Todos são considerados oportunistas, mas os bonobos deixaram de estar na moda, ao contrário dos chipanzés. São fenómenos cíclicos.
No interior mais recôndito de cada um de nós existe uma lista organizada das questões que consideramos prioritárias, e que inevitavelmente suscitam a nossa preocupação, a nossa vontade de participar na sua resolução ou, simplesmente, a nossa indignação.
Escrevi “ordenada por prioridades”.
Uma vez que a economia e as finanças se encaminham no bom sentido, norteadas por uma racional razoabilidade que não escapa a ninguém, tem sido possível gerir e distribuir globalmente os recursos disponíveis de um modo cada vez mais equilibrado, e tornar as sociedades cada vez mais próximas de um conceito de justiça equitativa. Os sistemas políticos, casa vez mais participativos e transparentes e o número incessantemente crescente dos respetivos intervenientes que se norteiam por altos padrões éticos e cívicos e por uma preocupação, que quase diríamos obsessiva, com o bem público, transportam consigo a marca iniludível de uma modernidade evolutiva que não para de se acentuar. A crescente sintonia entre governantes e governados tem tido um papel fundamental na diminuição das tensões sociais e na robustez de um sentimento generalizado de confiança e de humanismo.
Esta conjuntura mundial tem contribuído decisivamente para a gradual diminuição, em boa verdade quase erradicação, dos conflitos bélicos, e do seu multiforme cortejo de horrores. Os recursos financeiros que outrora se malbaratavam nos confrontos militares e nas decisões arbitrárias de minúsculas oligarquias de interesses pouco, ou nada conhecidos, permitiram reorientar esses fluxos de capital para, entre outros, os sectores da Educação, da Saúde e para um aperfeiçoamento transparente e humanizado da Justiça. O florescimento de patrimónios culturais sensatamente expurgados do acessório, e recentrados naquilo que constituem raízes e memórias que nos individualizam como membros de povos e culturas distintas.
Se nos detivermos a olhar para o passado da humanidade seremos levados a constatar o fosso que separa a modernidade presente de ciclos e paradigmas anteriores.
Essa constatação, de uma evidência explosiva, não podia deixar de reorientar a nossa listagem espiritual de questões prioritárias. Aquelas, afinal, que suscitam a nossa militância ou geram as nossas indignações. As indignações criativas e cívicas dos melhores de nós que mantêm a coragem de defender com equilíbrio e isenção as magnas questões da dignidade humana.
A ninguém resta a menor dúvida de que, dentro deste quadro conjuntural (infelizmente a eternidade é evanescente, astrofísica ou religiosa) tinha chegado o momento em que a problemática da tourada de anões viria a ganhar uma insuspeitada dignidade meta Constitucional, sistémica mesmo. E aqui só a visão, a coragem e o sentido de Estado, e do estado das coisas todas em cambulhada, poderiam levantar o repto, o desfio intelectual e ético.

Uma enorme Bem-haja Vital Moreira pelo seu, a vários títulos exemplar, texto sobre o cancelamento de uma tourada de anões em Viana do Castelo. Trata-se de um contributo, modesto é certo, mas assinalável, para o equilíbrio celeste das esferas. E que me permite nunca dissociar a enorme admiração que ambos partilhamos pela sua pessoa, do seu menos evidente mérito na área específica do humanismo. Razão suficiente para que nunca me ocorresse discriminá-lo, quanto mais saneá-lo (era assim que se dizia na ante modernidade, não era?) do meu convívio intelectual.

El Erudito