Vimos por este meio proceder ao respectivo pedido de desculpas formal, ao nosso colaborador El Erudito, porque erroneamente publicámos de forma "atabalhoada" um texto seu sem que ele estivesse completo. Seguidamente, publicamos já concluído, corrigido e formatado, o texto do mesmo nosso colaborador.
Vital Moreira e os sete anões
Vital Moreira e os sete anões
Num tranquilo fim de tarde deste Verão, em que o mundo
parece tudo menos tranquilo, fizeram-me chegar às mãos o texto, ou excerto de
um texto, que transcrevo a seguir.
Decididamente quando é que, perante a cobarde omissão do legislador, um tribunal tem a coragem de proibir estes espectáculos de degradação humana em nome da proteção constitucional da dignidade humana?>>
E garantiram-me ser da
autoria de Vital Moreira, alegadamente, publicado numa passada sexta-feira, dia
21 de Agosto de 2015, na sequência do cancelamento de uma tourada com anões em
Viana do Castelo.
São diversas as problemáticas sérias e inquestionáveis que
podem ter estado na origem desta indignação a que o jurista tem pleno direito,
e que o seu percurso e convicções pessoais justificam cabalmente.
Questões e conceitos como barbárie, sadismo público, odioso
atentado á dignidade humana (dos anões), coragem e
degradação, sobretudo quando invocados numa conjuntura em que os valores, bem
como as conceções éticas que traduzem, andam pelas ruas da amargura, primam
pela ausência, ou pela omnipresença do lugar-comum “politicamente correto”, não
deveriam ser entendidos com ligeireza. Como seria de esperar da parte de Vital
Moreira.
Mas parece forçoso
abordá-los casuisticamente.
Abusando
embora da semântica, e desculpando-me desde já pela liberdade polissémica que
tomo, interpreto em sentido lato o conceito de anão como uma questão de género.
Logo como algo de incontornável e muitíssimo atual. Algo que se prende com a
questão das minorias, ou géneros, oprimidos e descriminados. Recordemos que em
Espanha, em 1997, teve lugar uma sublevação conhecida no mundillo tauromáquico
como guerra dos Anões, que se ficou a dever ao facto de os artistas deste
“género” se recusarem pagar por inteiro as cotas ao sindicato dos toureiros. Ignoro
se essa recusa se baseava apenas num justo princípio de proporcionalidade
anatómica, ou se, subjacentemente, existiriam outros vexames e prepotências com
que, por via de regra, os maiores oprimem os mais pequenos. O certo é que a
reivindicação foi atendida dando assim origem a um novo tipo de carné de Toureiro ''Cómico-Taurino”. Categoria que aparentemente os satisfez, a despeito
da (involuntária?) redundância implícita, e ainda hoje prevalece. Nas não
constitui regra geral. Na América Latina de Bolívar, Pancho Villa e Evo
Morales, onde as revoltas contra as opressões e as discriminações têm justa
causa para permanecerem em brasa, ou eclodirem em chamas, o assunto foi
resolvido com dignidade natural; resultando daí que na Federación de Toreros de
México e Sud América, os artistas Anões tenham direito a um cartel de Toureiro
normal, e sem qualquer discriminação explícita.
Ignoro se Vital Moreira se inscreve na linha
de pensamento de acordo com a qual um sistema de quotas pode (deve?) contribuir
para uma mais do que justa caminhada em direção á igualdade de género. Mas
convirá seguramente que, tendo presente a existência de um segmento não
negligenciável de profissionais do toureio que se poderá inscrever no conceito
genérico de anão, o institucionalizar de uma quota obrigatória de membros deste
segmento de profissionais em todos os cartéis seria, a vários títulos, benéfico.
Como se demonstraria desde logo pela eliminação, ou simples diluição, da carga
pejorativa que ressuma do título: cancelamento
de uma tourada com anões em Viana do Castelo, que compreensivelmente encolerizou o Catedrático e Homem Público a
ponto de utilizar uma veemência de linguagem que habitualmente reserva para as
grandes causas da humanidade.
O Professor de
Coimbra tem-nos ensinado que as mentalidades não se mudam apenas com umas
quantas medidas avulsas que, tantas vezes, não passam de letra morta ou, entendida
e aplicada de acordo com os interesses e as conjunturas. A formatação das
massas só ganha em ser iniciada bem cedo através de uma adequada pedagogia,
susceptível de mergulhar o futuro cidadão eleitor, e sujeito passivo do sistema
fiscal, num caldo de cultura que lhe concentre o espírito nas orientações
superiormente definidas como politicamente corretas. Tendendo a generalizar-se
ultimamente a consciência de que, além de politicamente corretas, são as únicas
realisticamente possíveis, se quisermos evitar as consequências dramáticas que
a utopia grega desencadeou com a sua dissidente abertura da caixa de Pandora.
Exemplo claro desta
prática são os Planos Nacionais de Leitura através dos quais são superiormente
definidas as editoras, os autores, e as obras inequivocamente ortodoxas na
perspetival da Situação, que os
jovens devem ler obrigatoriamente durante a escolaridade. Esclareço o Constitucionalista Vital
Moreira de que tenho pleno conhecimento de que esta prudente e desvelada medida
cautelar, a que recorrerem e virão a recorrer todos os Regimes preocupados com
a difusão da boa doutrina e a erradicação das heresias nocivas, foi concebida e
posta em prática pelos pensadores do Ministério da Educação em data anterior á
da conferência intitulada De la manipulation des foules. Analyses dialectique, que Philippe Ploncard d’Assac só viria a proferir em 27 de
Junho de 2015
Mas em consonância
com esta linha de pensamento, a inclusão de obras como a Branca de Neve e os
sete anões no Plano Nacional de Leitura não deixaria de contribuir para a
edificação de gerações homogéneas e formalmente igualitárias, conscientes de
que todas as descriminações, sobretudo as de natureza antropológica, devem ser
abolidas numa sociedade em que todos os seres humanos (e não só) nascem livres
e iguais, partilhando a igualdade de oportunidades e os direitos
constitucionalmente garantidos, como a realidade evidencia a cada instante.
Podem todavia surgir algumas dissensões aparentes no
conceito unívoco de dignidade humana que é necessário e urgente ter a coragem de denunciar como fez
exemplarmente Vital Moreira. Afinal todos nós, atravessámos décadas de laxismo
durante as quais o princípio basilar do direito á diferença se foi disseminando
como se todas as diferenças tivessem o mesmo peso, a mesma dignidade e a mesma
legitimidade.
Parece incrível, mas sucedeu e prologou-se, com todas as
consequências que estão á vista de todos.
A doutrina do Eixo do Mal veio, em boa hora, pôr termo a
essa promiscuidade insidiosa que os governos que governam os governos da Europa
têm abordado e esterilizado com pinças e luvas de cirurgião. É imperativo que,
afinal, a realidade seja a preto e branco (polissemia e não só). O Bem e o Mal
coexistem e é indispensável fazer as escolhas corretas e tirar delas as
consequências óbvias e as ações decorrentes. E como todas as ações provocam
reações, geralmente de sinal contrário, globalizou-se a evidência de que o
direito á diferença não é um valor absoluto mas sim relativo e, justifica o
afrontamento generalizado, a rejeição e a intolerância em nome de um Bem
Superior situado num futuro condicional.
Nisso todos parecem estar de acordo, excetuando talvez
Varoufakis, Mortágua e outos dissidentes menores.
Mas como determinadas
situações de afrontamento originam impasses que se eternizam, as coisas
tornam-se negociáveis, relativizáveis e permutáveis por imperativos do mais
elementar realismo.
Sem me sentir obrigado a regressar ao Sísifo de Adolfo,
Benito, Pol Pot, Estaline e outros próceres diacronicamente distantes, mas
ritualmente invocados nas análises de custos/benefícios que padecem de uma
conveniente amnésia do presente e passado próximo, contemplo a visão de
ideólogos eminentes como, por exemplo, Abu Bakr al-Baghdadi, Donald
Rumsfeld, George W. Bush, ou o mais elusivo Tony Blair,
que me correm agora.
Os primatas ditos
superiores têm ao seu dispor ferramentas divergentes para organizar as
respectivas sociedades. Os chipanzés criam estruturas fortemente hierarquizadas
em que o poder é imposto através da imposição violenta de dominâncias
temporárias. São grupos dinâmicos, eficazes, expansionistas e muito, mas muito,
ruidosos e intolerantes. Já os bonobos, a fazer fé nos primatólogos, geram as
suas interações mediante o recurso a um sistema que apazigua os conflitos e
dilui a intolerância. Constituem grupos estagnados, pouco dinâmicos, nada
expansionistas, com hierarquias débeis e esgotam-se num hedonismo sem amanhãs
apelativos. Todos são considerados oportunistas, mas os bonobos deixaram de
estar na moda, ao contrário dos chipanzés. São fenómenos cíclicos.
No interior mais recôndito de cada um de nós existe uma
lista organizada das questões que consideramos prioritárias, e que
inevitavelmente suscitam a nossa preocupação, a nossa vontade de participar na
sua resolução ou, simplesmente, a nossa indignação.
Escrevi “ordenada por prioridades”.
Uma vez que a economia e as finanças se encaminham no bom
sentido, norteadas por uma racional razoabilidade que não escapa a ninguém, tem
sido possível gerir e distribuir globalmente os recursos disponíveis de um modo
cada vez mais equilibrado, e tornar as sociedades cada vez mais próximas de um
conceito de justiça equitativa. Os sistemas políticos, casa vez mais
participativos e transparentes e o número incessantemente crescente dos
respetivos intervenientes que se norteiam por altos padrões éticos e cívicos e
por uma preocupação, que quase diríamos obsessiva, com o bem público,
transportam consigo a marca iniludível de uma modernidade evolutiva que não
para de se acentuar. A crescente sintonia entre governantes e governados tem
tido um papel fundamental na diminuição das tensões sociais e na robustez de um
sentimento generalizado de confiança e de humanismo.
Esta conjuntura mundial tem contribuído decisivamente para a
gradual diminuição, em boa verdade quase erradicação, dos conflitos bélicos, e
do seu multiforme cortejo de horrores. Os recursos financeiros que outrora se
malbaratavam nos confrontos militares e nas decisões arbitrárias de minúsculas
oligarquias de interesses pouco, ou nada conhecidos, permitiram reorientar
esses fluxos de capital para, entre outros, os sectores da Educação, da Saúde e
para um aperfeiçoamento transparente e humanizado da Justiça. O florescimento
de patrimónios culturais sensatamente expurgados do acessório, e recentrados
naquilo que constituem raízes e memórias que nos individualizam como membros de
povos e culturas distintas.
Se nos detivermos a olhar para o passado da humanidade
seremos levados a constatar o fosso que separa a modernidade presente de ciclos
e paradigmas anteriores.
Essa constatação, de uma evidência explosiva, não podia
deixar de reorientar a nossa listagem espiritual de questões prioritárias.
Aquelas, afinal, que suscitam a nossa militância ou geram as nossas indignações.
As indignações criativas e cívicas dos melhores de nós que mantêm a coragem de
defender com equilíbrio e isenção as magnas questões da dignidade humana.
A ninguém resta a menor dúvida de que, dentro deste quadro
conjuntural (infelizmente a eternidade é evanescente, astrofísica ou religiosa)
tinha chegado o momento em que a problemática da tourada de anões viria a
ganhar uma insuspeitada dignidade meta Constitucional, sistémica mesmo. E aqui
só a visão, a coragem e o sentido de Estado, e do estado das coisas todas em
cambulhada, poderiam levantar o repto, o desfio intelectual e ético.
Uma enorme Bem-haja Vital Moreira pelo seu, a vários títulos
exemplar, texto sobre o cancelamento de uma tourada de anões em Viana do
Castelo. Trata-se de um contributo, modesto é certo, mas assinalável, para o
equilíbrio celeste das esferas. E que me permite nunca dissociar a enorme
admiração que ambos partilhamos pela sua pessoa, do seu menos evidente mérito
na área específica do humanismo. Razão suficiente para que nunca me ocorresse
discriminá-lo, quanto mais saneá-lo (era assim que se dizia na ante
modernidade, não era?) do meu convívio intelectual.
El Erudito