Um bom artigo de Bernardo Patinhas
A César o que é de César, e a Deus o que é de Deus?
“É-nos lícito dar tributo a César, ou não? Mas Jesus, percebendo a astúcia deles, disse-lhes: Mostrai-me um denário. De quem é a imagem e a inscrição que ele tem? Responderam: De César. Disse-lhes então: Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. [Lucas 20:22-25]”
Quando Jesus Cristo proferiu estas palavras a tauromaquia era coisa totalmente desconhecida…pelo menos no conceito moderno tal como a conhecemos, como atividade económica, de expressão artística com a finalidade de entretenimento cultural.
Não quer dizer que não existissem sacrifícios, jogos e manifestações lúdicas envolvendo desafios entre touros e homens, para gáudio da plebe e homenagem às divindades.
Mais ainda, os primórdios daquilo que podemos chamar de corridas de touros começaram por realizar-se, não nos recintos próprios que hoje conhecemos mas em praças e largos das vilas e cidades que, na celebração das suas festas religiosas, incluíam espetáculos de toiros. Era comum encontrar “ruedos” improvisados assentes nas paredes das Igrejas e Capelas, mostrando assim a “proximidade” Divina da festa dos touros.
No entanto, a “nossa” tauromaquia sempre foi assunto “terreno” e afastada dos assuntos “espirituais”, as corridas de touros chegaram mesmo a ser proibidas pela Igreja Católica sob a forma de Bulas Papais.
Todas estas circunstâncias não foram suficientes para afastar a paixão de alguns Homens de Deus pela tauromaquia e a sua “devoção” foi tanta que tivemos e temos ainda distintos membros da Igreja que se tornaram criadores de touros de lide.
Ironia do destino!? Não…simplesmente alimentaram o espirito com essa nobre e bonita tarefa campera, juntando-se assim à sua fé.
Embora os frades Cartuxos tenham sido pioneiros na criação de raças como o cavalo Andaluz, na região Andaluza de Jerez de La Frontera, e mesmo de algumas raças bovinas, desconhece-se se criaram também touros de lide, pelo menos com a finalidade de serem lidados.
Assim, o primeiro monástico ganadero de que se tem registo foi o sevilhano D. Diego Hidalgo y Barquero, padre da Catedral Sevilhana, que, a meados do Seculo XIX decidiu fazer-se a este caminho virtuoso e difícil, da criação de touros de lide.
Seguindo as tendências da época, no que respeita à criação de touros de lide, procurou a fórmula para dar um selo distinto à sua vacada, à base de cruzamentos entre exemplares de distintas procedências.
Como ponto de partida comprou reses de Giráldez, procedentes de uma das partes resultantes da fragmentação da ganadaria de Conde de Vistahermosa, mais tarde adquiriu dois machos, com o ferro de Vicente José Vázquez, mítico criador da Casta Vazqueña.
A aquisição dos machos não seria bem sucedida sem a intervenção do general Quesada, encarregado do testamento de Vázquez, através de Quesada conseguiu que lhe fossem deixados dois utreros, preparados pelo próprio Vázquez para sementais.
Os dois novilhos eram de pelagem berrendo em negro e foram cruzados com as vacas de Giráldez (Vistahermosa), introduzindo na ganadaria a característica da sua pinta, o que mais se destaca hoje no encaste Hidalgo-Barquero.
Posteriormente, em 1841, D. Diego vende a maior parte da vacada a Joaquin Jaime Barrero, deixando apenas quarenta e uma vacas e vários machos, tendo depois agregado mais reses de origem Vazqueña.
O monástico manteve a ganadaria até 1850, ano em que a vende a Ramón Romero Balmaseda, tendo depois passado para a família Laffitte e daqui transmitiu-se de mãos em mãos ganaderas, entre os quais se destacou o Marquês de Guadalest, que a conservou entre 1906 e 1933, somando grandes êxitos.
Depois de 1933 a ganadaria perdeu prestígio, através dos seus sucessivos donos e as reses que a integravam acabaram por se extinguir. Atualmente apenas se conserva o antigo ferro de Hidalgo Barquero, na propriedade de Manuel Prado y Colón de Carvajal, com reses de origem Torrestrella, quando foi propriedade dos irmãos António e Luis Domecq, que lhe introduziram 100 vacas, e que utiliza para a sua vacada chamada de “Guadalest”.
Entre os diversos proprietários da divisa destacam-se Jose Antonio Adalid, ainda no seculo XIX, Carlos Otaolaurruchi, nos começos do Século XX, Adolfo Gutierrez Agüera até à sua extinção nos anos 30, período da Guerra Civil Espanhola.
As únicas reses desta antiga ganadaria que ainda se conservam são as descendentes daquelas que, em 1910, comprou José Domecq a Gutiérrez Agüera e que cruzou com vacas de Surga (casta Vázqueña e Murube), com sementais de Tamarón, que deram novas características à vacada.
António Peñalver e os irmãos Pallarés foram donos da divisa posteriormente e, em 1935, venderam-na a José Benitez Cubero, que selecionou e consegui alcançar o seu apogeu.
Nos dias que correm, todas as ganadarias que levam sangue Hidalgo-Barquero derivam de reprodutores adquiridos a Benítez-Cubero, ganadaria sobretudo apreciada para corridas de rejoneo.
O segundo ganadero, com vocação espiritual e também terrena foi D. Cesáreo, padre de Valverde de Gonzaliáñez, Alba de Tormes, Salamanca, filho de Juan Sánchez Rodriguez, que em 1941 comprou a quase totalidade de reses e vários sementais da vacada de D. Vicente Charro, procedentes de Espioja (hoje em dia ferro pertencente a D. Adelaida Rodriguez, encaste Lisardo-Atanasio), oriundas de Jose Gameiro Cívico, ramo Parladé.
Volvidos uns anos, Juan Sánchez Rodriguez compra vacas e sementais da ganadaria de Visconde de Garci-Grande (puro Conde de La Corte) e adquire ainda dois sementais de Don Agustín Mendoza y Montero, Conde de La Corte, que viajaram da propriedade fronteiriça com Portugal, “Los Bolsicos”, tendo em vista definir a ganadaria com o sangue “Conde de La Corte”.
Apresentou-se como ganadero numa corrida de touros em Cieza, no ano de 1944, com os espadas Manolete e Carlos Arruza (primeira vez que tourearam juntos), resultando num êxito tremendo, sobretudo com três dos seis touros: Colegial, Velonero e Flamenco, animais de grande bravura.
Em 1947 toma antiguidade em Madrid com uma novilhada. Em 1953 divide-se a vacada pelos nove filhos de Sánchez Gonzalez e todos, menos Cesáreo, o padre, se desfizeram da herança ganadera.
O Padre Cesáreo conservou oitenta vacas e dois sementais, bem como o ferro original. Muitos anos se passaram sem que pisasse as grandes praças de touros, lidando quase exclusivamente em festejos menores, com o intuito de conservar o sangue “Conde de la Corte”.
A 23 de Julho de 1983 lida um grande touro, “Delgadote” em Ávila e no ano seguinte lida uma boa corrida em Peñaranda de Bracamonte, na qual se destacou “Gastador”.
Só em 1985, quando se começa a espalhar a lenda tourista desta vacada, começou a lidar em praças de maior categoria, um bom sobrero em Bilbau, o bravo “Grillito” em Logroño e a volta premiada a “Clavelito” em Ávila.
Em 1991 lida uma corrida em Madrid, que abriu o mercado francês onde, na atualidade, esta vacada continua a lidar.
No ano de 1994 morre Don Cesáreo, o “Cura de Valverde” como era mais conhecido e a ganadaria passa para os comandos das suas irmãs, Sinfo e Consolación, mais tarde para sua sobrinha, Carmen Mateos e finalmente para Leopoldo e Juan Mateos Sánchez, quem hoje a conduz.
Os últimos triunfos visíveis deste ferro datam de 1999 e 2002 quando se lidaram em Las Ventas dois touros de grande nota: “Carafea” e “Gironto”.
Na atualidade continua a lidar, muito pouco, sobretudo em França, evidenciando-se a irregularidade desta vacada com sangue “Conde da La Corte”.
Os criadores de touros de lide, membros do Clero Regular não se ficam por aqui, também em Portugal temos um exemplo e graças a Deus, que bem que assenta aqui esta expressão tão religiosa, vivo!
Falamos de Frei Elias Manuel Salgueiro, titular da ganadaria de São Martinho.
Natural de Amareleja, nascido numa família dedicada à agricultura e criação de gado, de origem espanhola, cedo se dedicou à criação do touro de lide, compaginando esta tarefa com a sua profissão, professor, e devoção, Deus.
Criada em 1974 com vacas e sementais Varela Crujo, refrescada em 1992 com reses dos encastes Parladé e Tamarón (Conde de la Corte).
Em 2002 comprou os direitos do ferro e divisa dos Irmãos Camacho lampreia, juntamente com uma ponta de vacas e com um semental Gamero Cívico.
No ano de 2003 adiciona um semental da casa "Palha" amavelmente cedido pelo ganadeiro Fernando Palha.
Esta ganadaria tem a particularidade de utilizar o antigo ferro dos Frades Dominicanos, datado do Séc. XVI, Ordem à qual pertence este Frade Ganadero.
Ultimamente foi introduzido sangue de procedência Lisardo-Atanasio, através da compra de vacas e sementais aos ganaderos Ruy Gonçalves (origem Adelaida Rodriguez) e D. Francisco Vera Sanchez (origem Fernandes de Castro e José Luis Vasconcelos de Andrade – Atanasio Fernandez – Conde de La Corte).
A ganadaria de São Martinho pontifica atualmente entre as ganadarias portuguesas de cunho “tourista”, apreciada por uns, criticada por outros, evitada ainda por outros, manifestações que só solidificam a sua fama.
Vários touros, nascidos no Monte de São Martinho, de grande nota se podem evidenciar, um lidado em Maio de 2011 em Moura e outro, um novilho, lidado já no ano de 2012, na Granja, destacam-se numa ganadaria que prima pela apresentação, trapio e verdade.
Curiosamente todas as ganadarias pertencentes aos ganaderos padres ficaram classificadas de touristas, a mais antiga, de Hidalgo-Barquero mantem-se como encaste próprio, a vacada do “Cura de Valverde”, sob a batuta dos seus sobrinhos herdeiros vai lidando corridas duras em França, onde o sangue “Conde de La Corte” é muito apreciado e finalmente, a ganadaria de São Martinho (Santo Peruano, monge dominicano, filho ilegítimo do nobre espanhol Juan de Porres e de Ana Velásquez, indígena negra alforriada, que deu nome a esta vacada de lide) vai abrindo caminho no Portugal taurino, tendo-se tornado assim, na atualidade, a única ganadaria de touros de lide no mundo, conduzida por um Frade Dominicano.
Quando Jesus Cristo proferiu, com toda a Sua sabedoria, aquelas palavras “A César o que é de César e a Deus o que é de Deus, ainda não havia corridas de touros, se já as houvesse Teria deixado um cantinho, nos assuntos de Deus, para aquilo que se fazia, nos assuntos de César.
Deus queira que Frei Elias não seja o último, para bênção da festa, através dos Seus representantes na Terra.
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