Touro expiatório

Sobre as touradas, parece-me que há uma certa embirração com a festa brava. Digo isto porque o Homem maltrata os animais das mais variadas formas. Desde logo, come-os. Depois, sequestra-os. É muito engraçado ter animais dentro de uma cerca ou em casa, mas isso é uma tortura grande. Um cachorrinho pode parecer muito feliz a correr atrás de uma bola na cozinha, mas a verdade é que nós fomos roubá-lo à sua natureza, que não é aquela. Lá vai sendo essa a sua natureza e eu acredito que um dia um cão pode fazer o favor de nos atender o telefone quando não estamos em casa, mas até chegarmos aí foram séculos de tortura animal.

Dir-me-á o leitor que a vida é mesmo assim. E, de facto, é. Eu adorava poder beber uma cerveja com um crocodilo, mas a verdade é que ele parte-me em dois com a cauda antes de eu poder sequer convidá-lo. A vida é mesmo assim.

Ora, perante isto e assumindo que o Homem é um animal inteligente que faz pouco de muitos outros animais, muitas dúvidas emergem sobre este estranho foco sobre as touradas, como se elas fossem o corolário da inevitável luta entre os animais. Porquê as touradas? São abatidas diariamente milhares de vacas para consumo humano. Por que raio não merece a vaca a mesma simpatia dos defensores dos animais? Porque dá um belo bife, claro. Mas não está escrito em lado nenhum, excluindo estudos parvos, que o Homem precisa de comer carne de vaca. A partir de amanhã, o Homem, querendo, podia indultar todas as vacas do mundo, salvando-as da crueldade do matadouro.

Mas com as vacas e os porcos ninguém se preocupa. Aliás, a luta contra as touradas parece que expia os pecados de quem não gostando de touradas, perde-se por um suculento naco de carne proveniente de um animal que alguém teve de abater para ali chegar.

Uma pergunta impõe-se: O que diriam as pessoas que estão contra as touradas se houvesse uma proposta para acabar de vez com a festa brava, abatendo-se contudo estes animais em matadouros controlados pela ASAE, para consumo dos aficionados. Será que festejariam a salvação do touro das garras daqueles patifes que os lidavam em praça numa festa em que ele e a sua nobreza são a principal atracção? Provavelmente sim. Provavelmente festejariam. Logo, o problema não está no destino que o homem dá ao touro, mas na alegria com que o faz. Ou seja, se os matarem lá no barracão onde eu não vejo, sim senhor, estou a proteger o animal. Mas numa praça, com pessoas a aplaudir a força, a coragem e a bravura do animal, isso não, de maneira nenhuma. Matadouro escondido, sim. Praça central, não, porque quem não vê é como quem não sente.

Aliás, foi recentemente apresentada pelo Bloco de Esquerda uma proposta que visava proibir a transmissão de touradas na televisão, o que só fundamenta esta minha teoria de que o que a malta não quer é ver. Nós sabemos que matamos animais, não queremos é ver. Queremos que alguém faça esse trabalhinho por nós, às escondidas, que nós depois comemos já longe de ver o sofrimento por que passou o resto do animal donde se retirou tão belo bife.

Os movimentos que estão contra as touradas deviam ampliar o seu objecto e defender todos os animais. Se alguém quiser lançar a primeira pedra de uma verdadeira constituição universal dos direitos dos animais, onde os princípios aplicados aos Homens são transpostos para estes seres, nomeadamente no que respeita ao direito à vida, à justiça, equidade social e igualdade entre géneros ou espécies, então aí sim estaremos a falar de uma verdadeira defesa dos animais. Será algo absolutamente contrário à natureza e impraticável, mas honesto do ponto de vista do conceito, porque não se pode andar a criticar as touradas e a elogiar o leitão da Mealhada.

Concluindo, retomando o início, parece-me que a luta contra as touradas não passa de uma embirração que resulta do facto de as corridas de toiros espelharem um capítulo da relação entre o Homem e os animais que muitos preferem não ver, não saber nem ouvir falar, como se assim não existisse. E se algum dia conseguirem acabar com as touradas, acabarão também com o touro bravo, o tal animal que dizem querer defender dos únicos homens no mundo que os criam, para uma finalidade que não é menos nobre que encher de lombo a pança da burguesia.