Um jantar triste em casa do Sr. Alípio, pai do Tatonas
Hoje quero começar por chamar a atenção dos leitores para este facto : há neste grupo um dado curioso, que se resume ao caso de, sendo da mesma idade, todos tratarem o eng. Bernardo por você e ele tratar todos por tu. No Centro e Norte não é hábito as pessoas tutearem-se à primeira vista. Respeitam-se estatutos, idades, intimidades e até na família se trata os genros e as noras não conhecidos de criança por você, o que na minha opinião estreita mais a distância entre respeito e consideração, ao contrário de certos ambientes onde alguns pensam que tutear dá estatuto.
Dois ou três dias depois da viagem épica à tourada no Montijo e ao estádio da Luz, estavam os cinco residentes de Vila Velha no café a tomar a bica quando entrou o sr. Alípio, pai do Tatonas, que cumprimentou os cinco um por um e perguntou: "Então como estava o meu Alípio (verdadeiro nome do Tatonas) ?" Emudeceram todos, até que o Aurélio disse : "O seu filho tinha-nos dito que à tourada e ao futebol não iria, mas que no Sábado almoçaria ou jantaria connosco. Telefonámos-lhe insistentemente na Sexta-Feira, no Sábado de manhã e à tarde de vários telefones e nunca nos atendeu. Foi pena, porque passámos três dias de que não nos vamos esquecer”. Começou então a fazer o relato dos três dias, desde o farnel do Rúben ao almoço oferecido pelo eng. Bernardo, ao jantar pago pelo dr. Rui, à ida aos fados e à ceia paga por ele, Aurélio (nesse momento, divagou fortemente sobre as mamas da fadista), do almoço de regresso na Sopa de Pedra em Almeirim, pago pelo Larilas, que se ria muito e batia palmas enquanto dizia ao velho Sr. Alípio que chamavam caralhotas aos pães, ao jantar que o Bruno Miguel pagara à chegada, antes de irem para casa. O eng. Aurélio falou ainda da tourada que fora óptima, do futebol que tinha sido uma merda e da ida ao Elefante onde vira uma manada se gajas (palavras suas) como só tinha visto no cinema ou em revistas.
O velho Sr. Alípio ouviu com ar acabrunhado a descrição e os apartes dos presentes e disse : "No Sábado às 20 horas estão convidados para jantar em minha casa, vou falar com o meu filho e ele vai estar presente. Tenho todo o gosto nisso…"
Os dias que faltavam não eram muitos e no outro dia de manhã, antes de ir para a repartição, o pai do Tatonas e a mulher, a Dª Felismina, combinaram a seguinte ementa :
Aperitivos - Presunto de lamego, chouriça regional e requeijão de guardanapo.
Sopa - Canja farta de galinha de campo.
Peixe - Pescada frita, acompanhada só com salada.
Carne - Borrego assado no forno de lenha com batatinhas e grelos.
Sobremesa - Arroz doce e mousse de chocolate.
O sr. Alípio ficou de trazer para casa os aperitivos, a galinha já morta e depenada e a pescada já cortada às postas, bem como o borrego mamão já trinchado em pedaços do tamanho duma mão fechada. Recomendou ainda à Felismina, cujo pai era oriundo de Condeixa, que falasse a uma ou duas mulheres para a ajudar, dizendo esta que iria falar com a Dª Anália, viúva e amiga dela da Igreja, que fazia, na opinião do sr. padre, o melhor arroz doce do concelho. Foi ao mercado e pediu à peixeira que lhe arranjasse uma pescada de dois quilos devidamente arrepiada, da qual pediu que separasse a cabeça com gola e o rabo com posta agarrada e quanto ao meio pediu que fossem cortadas postas de cerca de dois cm, pedindo ainda para levarem a encomenda a sua casa na Sexta-Feira às 2 h da tarde, tendo a peixeira dito que levaria pescada do Chile que é mais rija.
Passou pela zona do mercado onde vendiam animais vivos (galináceos, coelhos, patos…) e um dos vendedores saudou-o de forma efusiva, recordando-lhe um favor que o sr. Alípio lhe tinha feito e perguntando do que este andava à procura, respondendo o Sr. Alípio que procurava uma galinha gorda para fazer uma canja num jantar com convidados especiais. O vendedor disse-lhe que mataria a melhor das galinhas criadas por si e a levaria lá a casa com uma garrafinha de sangue já temperado com um pouco de vinho, para não coalhar, no dia e à hora que o Sr. Alípio dissesse. Que tudo isto era uma pequena lembrança sua e, recordando de novo o quanto devia ao Sr. Alípio, ficou assente ser a entrege na Sexta-Feira às 3 h. Por fim, telefonou a um amigo que fabricava queijos e combinaram encontrar-se às 6 h da tarde no café em frente à repartição. À hora marcada, lá estavam os dois, cumprimentaram-se efusivamente e disse o sr. Alípio : " Amigo Alfredo, preciso dum favor seu, preciso de meia dúzia de queijinhos secos e de meia cura, um bom queijo da serra, um requeijão de guardanapo e um borrego mamão grande (daqueles que ainda não comeram erva) na Sexta-Feira às 8 h da noite em minha casa, Acrescentando que o amigo Alfredo não olhasse a preços, ao que este respondeu que já há muito tempo que tencionava dar-lhe um presente, tinha chegado agora a oportunidade. O Alípio, meio envergonhado, disse ao Alfredo que aquilo era uma loucura, respondendo este que ele é que sabia, tendo adiantado a sorrir “nunca se sabe quando volto a precisar do senhor “.
De vinhos e whiskies estava mais que servido com o que lhe tinham dado pelo Natal e lembrou-se mesmo duma caixa de tinto com três ou quatro anos, da adega Cooperativa de Nelas, que era raro e apreciadíssimo.
As entregas foram feita como combinado: A galinha, tirada a enxúndia, foi cortada em quatro e posta logo a cozer numa panela grande ( não de pressão) com um punhado de sal, uma cebola e cinco dentes de alho esmagados. A pescada ( deu 9 postas) foi temperada com alho picado miúdo, muito limão, sal, pimenta preta e coberta de leite gordo. O borrego veio num tabuleiro cortado aos bocados, quase do tamanho duma mão fechada, e foi acondicionado no frigorifico, porque para ser assado à moda de Condeixa somente seria temperado banhando cada peça numa calda de azeite, alho esmagado, pimenta, colorau e malaguetas, pouco tempo antes de ir para o forno.
No Sábado, eram duas da tarde, reinava azáfama no pátio e na cozinha de fora, onde havia um forno a lenha e um fogão de três bicos de gás industrial, quando apareceu o sr. Alípio com os olhos marejados de lágrimas e disse : "Felismina, o nosso filho não vem.". Recompôs-se e acrescentou com voz firme : "Não vem, mas eu quero que o jantar siga na mesma...”.
Às oito horas, chegaram os convidados que souberam então da ausência do Tatonas e ficaram surpreendidos e tristes, mas mantiveram o apetite. A acompanhar a canja atascada de nacos de galinha, vinha uma molheira com sangue, porque na região há quem aprecie deitar um pouco de sangue na canja. A pescada passada por farinha e ovo sabia a mar, tendo as lascas a aparência marmórea típica da qualidade. O borrego desfazia-se de bom, mantendo o sabor da carne não adulterado por temperos.
A certa altura, disse o eng. Bernardo” só é pena não estar cá o seu filho”. O Sr. Alípio poisou os talheres e disse: "Pois é pena, mas não veio de propósito para me entristecer. Fiz tudo por ele e não fiz mais porque ele não quis. Levei-o a um médico a Coimbra para o operar ao estrabismo e ele recusou a insultar-me, dizendo que eu o queria operar por ter vergonha dele. Montei um ginásio naquelas duas garagens e arranjei um professor para trabalhar com ele, riu-se na minha cara e chamou-me estúpido e burguês. Há vários anos que não me chama pai e muito menos paizinho, chama-me monte de merda, anormal, burro, estúpido, porco, etc. Nos poucos dias em que vem à terra, chega, não me cumprimenta, vai-se embora e não se despede de mim. Há dois anos chegou cá pelo Natal vestido como um pedinte, fui a Viseu, comprei-lhe três camisolas, quatro pares de calças e uma boa parka, duas horas depois vi fumo no pátio, fui ver o que era e estava tudo a arder num monte a que ele ateou fogo. Sabendo que ganhava pouco, todos os meses lhe mandava uma mesada boa. Pois há cerca de um mês mandou-me uma carta com as contas de tudo o que lhe mandei e um cheque referente a esse valor, com um escrito em que dizia “a partir de agora não te devo nada”.
Com tudo isto, nunca discuti com ele… A minha vida não tem sentido, qualquer dia...
Os amigos estavam siderados, só o eng. Bernardo disse : "Tinha-lhe feito bem a tropa…"
As amigos sairam da casa do sr. Alípio, pararam uns metros à frente e começaram a dissecar tudo o que tinham ouvido e à despedida o Rúben disse : “O gajo, como sempre disse, é um complexado de merda e um grande filho da puta...
