Tributo a Angel Peralta
Angel, à medida que o tempo passa, mais vou tomando a consciência do que és e do que foste ao longo dos anos. Hoje posso afirmar, e afirmar sem sombra de dúvidas, que foi contigo que mais aprendi do toiro, do cavalo, do toureio, e no seu todo da profissão que abraçaste.
Durante mais ou menos duas dezenas de anos tiveste o recorde de corridas toureadas na mesma época.
Um dia, em Barcelona, toureaste de manhã, à tarde e à noite.
Cortaste orelhas e rabo em Sevilha e na praça México.
Vi eu, com estes olhos que a terra há-de comer, preencheres todo um tércio de bandarilhas com pares a duas mãos (bandarilhas normais, curtas e rosas). Ah!!!... mas a isto há que juntar que o fizeste com a reforçada dificuldade de executares a sorte ora pela direita ora pela esquerda.
Não conheço ninguém que melhor soubesse aproveitar o tempo como tu.
Até aquelas infindáveis horas de viagem que fazias, e tantas fizemos juntos, tu aproveitaste para aprender francês e inglês, ouvindo aquelas cassetes que tinham na capa a seguinte frase: ‘Francês sem mestre’ ou ‘Inglês sem mestre’. Estou convencido que ninguém no mundo, senão tu, aprendeu línguas com aquelas cassetes.
Quando o sono espreitava compunhas e cantavas rocilleras, tocando-as à flauta para que eu ou outro que fosse a conduzir não adormecesse.
Publicaste livros de Fábulas notáveis, como a do “O pássaro e o touro”, tão só o mais redutor dos argumentos a usar contra antitaurinos, e publicaste uns livrinhos de pensamentos filosóficos próprios de um homem que passou pela vida de olhos abertos, observando em seu redor a vertente humana do mundo, a paisagem, os animais domésticos e os selvagens, à luz da chama imensa da arte, do saber e da realidade, tudo isto apoiado numa certa utopia característica dos génios.
Esses teus livros de pensamentos filosóficos, a que deste o titulo de “Cabriolas”, são em tamanho parecidos com os dicionários ditos liliputeanos, que no meu tempo se usavam para copiar nos pontos de francês e inglês.
Vou contar-te uma história a propósito desses teus livrinhos de pensamentos.
No ano em que comemoraste o teu quadragésimo aniversário de toureio, juntámo-nos, várias pessoas tuas amigas, e resolvemos organizar-te, e organizámos, uma festa comemorativa da data.
Era nessa altura ministro da Cultura do meu país o falecido, e meu amigo de infância, Dr. Francisco Lucas Pires.
Alguém teve a ideia de sensibilizar o ministro para que este assistisse à corrida que se realizaria em Salvaterra de Magos, distinguindo-te de algum modo (tal como achávamos merecido) como homem de cultura, tanto pelo que ajudaste a divulgar em Espanha a arte de Marialva, como pela forma como levaste o cavalo Lusitano a ser conhecido mundo fora.
Da delegação recebida pelo ministro, de entre outros, fazia parte eu e o meu irmão Manuel Lamas, que me sugeriu que levasse os tais livrinhos e os oferecesse ao ilustre político.
Assim fiz!!! O Dr. Lucas Pires sorriu e disse-me: “São pequeninos, vou lê-los, porque se fossem grandes não teria tempo”.
No dia da corrida chamou-me à parte e disse: “Os livros do nosso homem deram mais trabalho a ler que muitos livros grandes pelo que têm de tão profundos. Alguns dos seus pensamentos li-os mais do que uma vez, para saborear”.
Com tua licença, vou transcrever alguns “p’ra que aterra não esqueça”:
“Al caballo, como a el hombre, lo doma el tiempo…”.
“Es tan grande el amor, que hundindonos en la tristeza, lo volvemos a buscar con alegria”.
“Cuando se tiene el sol, no se valora otra luz”.
“El aire como el amor, tiene su fuerza oculta en su transparencia”.
“La intimidad tiene su luz en la obscuridad”.
“Al caballo que mira de frente… le gusta la verdad de la bravura”.
“Dios puso el placer tan cerca del dolor que a veces se llora de alegria…”.
Estes são alguns pensamentos, tirados completamente ao acaso da tua obra, e que dão a dimensão de uma personalidade rara.
A tua alma de artista fez-te passar pelo cinema várias vezes, mas tens a tua maior força no filme “Cabriola”, que interpretas com Marisol.
Até tu apareceres no rejoneo, as actuações dos cavaleiros não tinham expressão, eram inclusivamente algumas vezes anunciadas como o número do “caballito”. Com o quarteto da apoteose que tu formaste, e ao qual deste dimensão internacional, começaram a anunciar-se “Corridas d’el arte de rejoneo”, e é por isso que por toda a Espanha e todo o mundo taurino se diz que tu puseste o rejoneo em arte.
Ao apelidarem-te de “centauro de la Puebla”, pretendem dizer que essa figura (metade homem metade cavalo) da mitologia se homenageia no homem que passou grande parte da sua vida a cavalo, ou dedicando-se a essa nobre besta, no que à sua saúde e à sua selecção disse respeito.
Hoje que se vulgarizou o galope a ladear na cara dos toiros, é bom lembrar que o primeiro a fazê-lo foste tu, no “Mexicano”.
O primeiro cavaleiro a receber um toiro à garocha, à saída do curro, foste tu, do mesmo modo que também foste o primeiro, senão o único, a receber um toiro a cavalo à ponta de um capote, correndo-o assim até parar.
Foste igualmente tu o primeiro a pregar piruetas na cara do toiro à saída da sorte, e a pregar quiebros pela esquerda e pela direita com o mesmo cavalo, chamado “Jabato”.
A soma dos valores das tuas participações gratuitas em espectáculos de beneficência, seriam rico aconchego para muita gente.
Como testemunho do que acabo de dizer, existe em “Medina de Rio Seco” um lar de terceira idade e uma praça de toiros (onde estive ainda há poucos anos com o quarteto feminino) que são propriedade da ordem religiosa das Freiras de S. Vicente de Paula, e que têm à entrada um busto teu como reconhecimento por tudo o que fizeste pela instituição e pela ordem, além de não ser demais assinalar os desvelos com que as freiras te tratam e o quanto te estão agradecidas, como eu presenciei das várias vezes que lá fomos.
A universidade de veterinária de Córdoba distinguiu-te como Veterinário Honorário de Espanha, a associação dos cavalos Cartujanos nomeou-te seu presidente vitalício e honorário, e o gobierno distinguiu-te com a Medalha de Benificiencia, e mais, e mais, e muito mais distinções...
É assim. O mundo reconhece em ti o homem, o toureiro, o criador e o intelectual que deixará um dia um espólio ímpar.
Não resisto a recordar-te uma história, que se pode juntar a tantas outras e que documenta bem a faceta nobre do teu companheirismo.
Um dia toureavas com Paulo Caetano em “Ladrada”, ao pé de Madrid, numa praça desmontável. A camioneta do Paulo, por se ter avariado, não chegou a horas e tu disseste-lhe: “Toma o Lírio (ferro Borba) e o Zíngaro (ferro Salgueiro)” – que eram à época os teus melhores cavalos –, “porque ao pé de mim não vais deixar de cumprir o contrato”. Foi então que eu te disse: “Obrigado mas... Vê lá... não será melhor emprestar-lhe outros de segundo plano?”; ao que tu respondeste: “Nestes ele entende-se de certeza e nos outros não sei”.
Sem palavras!!!...
A tua paixão pelo cavalo era, e é, desmedida. Qualquer notícia que te chegasse de um cavalo a centenas de quilómetros alterava-te, e altera-te, qualquer rota.
Por essa tua paixão cheguei a parar o carro e a fazer parar a camioneta que se encontrava em trânsito, de uma corrida acabada para a do dia seguinte que se realizava a centenas de quilómetros, só para que tu, num qualquer descampado, à luz dos faróis do automóvel, desses uma lição a um ou vários cavalos que nesse dia não tinham estado bem.
Curvo-me perante ti, meu querido amigo e mestre.
Serás sempre p’ra mim, e p’rós meus filhos que desde pequenos aí vão a tua casa, a melhor e maior referência, e deixo-me planar agora sobre facetas de um passado que tão bem conheço mas que exige o recato e a discrição. Que se mantenham ocultas, por pertencerem à tua intimidade, à minha e à de mais alguns, poucos, amigos.
Foste, és e serás um homem de paixões.
Tudo o que fizeste na tua vida profissional, ou em qualquer estar e ser, foi, e é, vivido com paixão.
Que vivas muitos anos Maestro, porque este nosso mundo precisa cada vez mais de ti.
Neste contributo possível mas infinitamente aquém do real, deixo o meu sentir franco e profundo, “p’ra que a terra não esqueça”.