Em Samora Correia, nas vésperas da última corrida da festa do toiro toiro, circulavam rumores desencontrados. Dizia quem os tinha visto que os animais do curro de Dolores Aguirre, destinados á corrida de encerramento das festas da cidade, alguns a escorregar dos cinco anos para riba, metiam respeito. Que os tinham visto dar quatro voltas á tapada, atascados até aos peitos, ou na ponta da unha, sem abrir a boca, e outras histórias do mesmo jaez. Pouca gente recordava que um dos curros desta prestigiada ganadaria lidados este ano em Espanha tinha ficado muito aquém daquilo que seria de esperar.
Depois os boatos de comédia mudavam cada vez que os foguetes anunciavam o começo ou final duma largada. : Afinal os toiros parecia não terem sido pagos.
No Tretas e Olés, falava-se em exigir o dinheiro dos bilhetes ao Zé Nunes, porque alguém sabia que o empresário já tinha comprado um curro de substituição. Mas na manhã de 22 já existiam certezas, os toiros afinal vinham a caminho e havia quem tivesse fotocópias da respectiva documentação, toda direitinha e integralmente correspondente ao que os cartazes anunciavam.
Começou então o 2.º acto, mais propriamente a Tragédia. A campinagem, designando com ternura fraterna os forcados, como matraquilhos , vaticinava horrores. E murmurava-se que as casacas dos cavaleiros e peões de brega tinham começado, todas ao mesmo tempo a desbotar das suas vária cores e matizes para um amarelo muito pálido. Dizia-se, eu sei lá o que se dizia…
Uma hora antes da abertura das bilheteiras as luzes ainda não estavam acesas , e os cavaleiros, cavalos e forcados fundia-se numa mancha pardacenta de mau agoiro. Apanhado de supetão o Bernardo Cid repetia ;- uma tragédia, isto vai ser uma tragédia!
Com a desmontável a rebentar pelas costuras saiu o primeiro Aguirre, um toiro sério, rematado, com idade sobeja e trapio correspondente, exactamente como os cinco irmãos que se seguiram. Mais coisa e menos coisa.
Mas pouco, ou nada interessados no cavalo, investindo quase exclusivamente ao pano, a denotar a selecção específica da linha.
A seriedade evidente das rezes estendia um silêncio sobre a praça. Mas o comportamento das mesmas foi levantando gradualmente dichotes . Os Aguirre iam choutando com relutância, a obrigar os cavaleiros em terrenos muito arriscados, daqueles em que, a menor distracção ou perder de cara a animais com aquela presença e idade equivale a uma guia de marcha para a enfermaria. E nem pestanejavam ao castigo, aguentando, impávidos e sonolentos a ferragem, sem sequer pestanejar.
Alguém, entusiasmado, comentou : -isto é casta. E logo outras vozes se levantaram a sublinhar que a casta nem sempre explica tudo, e talvez a viagem demorada e o adiantado da hora tivessem deixado os Aguirre, toiros de reconhecidos bons costumes e criação severa, demasiado ensonados para as noitadas de Samora Correia.
O certo é que as bisarmas, depois de uns curtos arreões e de umas voltas a chouto, chegavam aos forcados frescos como alfaces graúdas. E logo no abrir de praça, pelo grupo dos Amadores da Moita, se receou que a tal tragédia acontecesse se o animal se empregasse empurrando com todo o motor de reserva.
Mas nas dezenas de anos que levo a ver toiros nunca assisti a tamanho festival de pegas rijas e executadas a preceito, o forcado da cara percorreu três quartos de praça sozinho e fincado na córnea do toiro como uma lapa, enquanto o grupo se reorganizava com valor e eficácia. A segunda, que viria a valer o troféu da melhor pega a João Paulo, dos Amadores de Salvaterra de Magos, foi ainda, se é possível, mais espectacular. O terceiro toiro proporcionou aos açorianos amadores do Ramo Grande a actuação tecnicamente mais difícil, levando toureado um Aguirre que arrancou com muito ímpeto e gazapeando.
Até aí tudo pegado á primeira tentativa, deixando os toiros vencidos, e tão desmoralizados que se deitavam na hora de recolher aos chiqueiros…
Só na quarta pega foi necessária uma emenda, executada por Nelson Duarte, de Salvaterra de Magos, num touro que alguns consideravam “impegável” com a alegria e o coração a que nos habituou. Mas aí houve baixas a lamentar. As duas restantes pegas também foram concretizadas á primeira tentativa, sem desmerecer das antecedentes. Uma noite memorável para a cidade que, pelo menos nessa ocasião, trocou o nome de Samora Correia por Samora Forcada.
Os cavaleiros, cujas quadras não apresentavam, de um modo geral, montadas reconhecidas pelos menos informados superaram, no todo e individualmente as expectativas. Mormente com toiros sérios mas acusando um comportamento repletos de reservas e que apenas transmitiam pelo trapio. José Manuel Duarte cravou curtos apreciáveis Tito Semedo foi crescendo no decorrer da lide, a superar as dificuldades do adversário. Marcos José, enfrentando um toiro particularmente ingrato, conseguiu evitar uma colisão frontal, de que a égua o tirou, revelando faculdades insuspeitadas, e rematou com uma sorte de violino Gilberto Filipe esteve esforçado e deu-nos a sensação de que, acaso houvesse desenhado as sortes em terrenos mais adequados, poderia ter “espremido” maior cooperação ao inimigo que lhe calhou (e não podemos dizer em sorte). De Tiago Martins, francamente não esperávamos tanto, tendo em atenção a sua “rodagem” e a aura dos Aguirre. Mas o cavaleiro dos Casais da Marinela, não fraquejou e foi mais além do que lhe era exigível. Finalmente Nelson Lima, o carrasco deste curro de Dolores Aguirre, provou que era possível ir “picar “ o toiro em terrenos inverosímeis, inacreditáveis, daqueles onde uma visita com toiros menos sonolentos equivale seguramente a um brevet de voo sem motor muitos furos acima da média.
O júri de Samora Forcada foi, uma vez mais, criterioso e desassombrado ao deixar deserto o prémio para a melhor lide. São também homens assim que honram as festas. E não peçam contas aos cavaleiros. Apresentem antes a factura nos escritórios da ganadaria
Uma palavra de apreço para as quadrilhas que desempenharam o seu trabalho com acerto, mencionando o jovem Francisco Freire cujo percurso anterior lhe garantiu uma discreta segurança e sentido de oportunidade em cada lance de capote
D. Erudito
(Repórter X enviado especial de João Cortesão)